Simone Biles, Nadia Comăneci, Kohei Uchimura, Svetlana Khorkina e Elena Produnova. Sabe o que estes nomes têm em comum? Fazem parte de uma lista bastante restrita de ginastas que conseguiram dar o seu nome a um novo elemento na ginástica artística. Mas, sabia que há uma portuguesa na lista?
O nome Filipa Martins já é incontornável na ginástica. Aos 28 anos conseguiu levar Portugal aos quatro cantos do mundo, bateu todos os recordes possíveis na ginástica nacional e, claro, até criou um elemento que viria a ser batizado com o seu nome.
Foi depois de alcançar a melhor prestação de sempre de uma ginasta portuguesa em campeonatos europeus, com o 5.º lugar na final de paralelas assimétricas, em Itália, e a sensivelmente dois meses dos Jogos Olímpicos de Paris que falámos com Filipa Martins, a melhor ginasta portuguesa de todos os tempos.
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O início de um sonho
Aos quatro anos, por iniciativa dos pais, começou a dar os primeiros passos e a traçar o seu percurso no mundo da ginástica, onde mais tarde seria considerada a maior ginasta portuguesa de sempre.
"Comecei a ginástica com quatro anos, por iniciativa dos meus pais e no infantário também praticávamos um bocadinho de todas as modalidades. Na altura, a mãe de uma amiga minha que trabalhava, e ainda trabalha, na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, tinha lá um clube e perguntou se eu não queria ir lá experimentar, era o FC Porto e acabei por ficar lá até 2019", começou por dizer.
E o resto? O resto é história, mesmo que Filipa nunca tenha imaginado o caminho de conquistas que tinha pela frente. Mas, a verdade é que o talento aliou-se ao trabalho árduo, ao esforço e a treinos, atrás de treinos.
"Nunca imaginei chegar onde cheguei. Acho que foi um processo, mas sempre tentei lutar pelos meus objetivos que na altura, se calhar, era só ser campeã nacional. Sempre tentei superar-me diariamente e tornar-me melhor do que era no dia anterior. Apenas aos 15/16 anos, quando comecei a ter competições internacionais, é que comecei a sonhar com os Jogos Olímpicos. Aos 4, 5, 6 anos era para me divertir no recreio ao final do dia", explicou.
O estatuto enquanto 'a melhor ginasta portuguesa de sempre' não assusta Filipa, pelo contrário é "um orgulho" e "um sinal de reconhecimento" do seu trabalho. Apesar da modalidade ser individual e a distinção vir no seu nome, a ginasta não esquece "as pessoas e os treinadores certos" que apareceram no seu caminho "para conseguir ser a pessoa" que é hoje.
"Não é só de mim e do meu trabalho, mas também de uma equipa e dos treinadores que fizeram este percurso comigo", garantiu.
A estrela em ascensão
Falar de Filipa Martins é falar sobre a ginasta mais medalhada de Portugal e que abriu portas a alguns dos melhores momentos e resultados da ginástica nacional. Desde cedo que o talento da atleta natural da Maia não passou despercebido e com ele vieram várias medalhas na Taça do Mundo de ginástica artística e várias conquistas em competições pelos quatro cantos do mundo.
Se recuarmos quase dez anos, a 2015, aos 19 anos, Filipa terminou o ano a liderar o ranking mundial de paralelas assimétricas da Federação Internacional de Ginástica, para além de ter conquistado três medalhas, duas na Taça do Mundo de Ginástica Artística em Cottbus, com o bronze em paralelas assimétricas e no solo e, uma em Anadia com a prata em paralelas assimétricas.
É inevitável falar do seu percurso sem mencionar dois feitos: a participação nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, em que a sua estreia ficou marcada pela melhor participação olímpica de sempre de uma ginasta portuguesa e, claro, em 2021, a meses da segunda participação olímpica apresentou um novo elemento que acabou por ser batizado com o seu nome. Mas, haveremos de chegar lá...
Nesse mesmo ano, em Kitakyushu, no Japão, voltou a fazer o melhor resultado de sempre, com um sétimo lugar, no concurso all around dos Mundiais de ginástica artística.
"Depois destes Jogos não sei se continuo ou se paro…"
Em 2022, nova medalha, agora de bronze nas finais da competição de barras paralelas assimétricas dos Jogos do Mediterrâneo 2022 e, em 2023, repetiu o feito na final de trave da Taça do Mundo.
Ainda neste mês (maio de 2024), Martins alcançou a melhor prestação de sempre de uma portuguesa em campeonatos da Europa de ginástica artística, ao ser quinta na final de paralelas assimétricas, em Itália.
Contudo, bater recordes não é algo que lhe passe constantemente na cabeça: "Nós nunca falamos muito dos recordes… ainda agora fizemos história e não era o nosso objetivo fazer história e ir para uma competição a dizer 'ah, temos de superar este resultado'. Tentamos sempre fazer o nosso melhor e fazer com que aquilo que treinamos tanto saia bem", assumiu.
"O Europeu serviu um bocado para saber se estávamos a ir no caminho e na estratégia certa e perceber algumas coisas que tínhamos mudado nos nossos esquemas. Foi muito bom, foi uma experiência muito boa! Foi uma ótima preparação para os Jogos Olímpicos e tudo o que viesse de acréscimo era ótimo, por isso, conseguir mais um feito histórico se calhar no meu último Campeonato da Europa foi muito bom", admitiu.
O histórico 'Martins'
Há uma lista muito exclusiva, principalmente nos últimos anos, de atletas que se conseguem transcender e aliar o talento à inovação para criar um elemento novo no mundo competitivo que é a ginástica, ao ponto de verem o seu nome eternizado na história do desporto. Filipa é a única ginasta portuguesa a conseguir esse feito.
24 de abril de 2021: Foi o dia em que a maiata voltou a deixar a sua marca na ginástica internacional, eternizando o seu nome numa elite restrita da ginástica mundial, o 'Martins' era oficialmente apresentado ao mundo, no Campeonato da Europa de Ginástica Artística, em Basileia, na Suíça.
Filipa explica-nos como surgiu o Martins, gesto técnico inventado por si nas paralelas assimétricas, que "não foi algo pensado, de todo".
"Foi ali no período da quarentena que voltámos aos treinos, ali no final de maio, não tínhamos nenhumas competições esse ano, porque tinham sido todas canceladas e começamos a experimentar coisas diferentes e a testar elementos novos para depois meter nos esquemas. Foi assim que começou a surgir o 'Martins', que bem, agora é 'Martins'", explicou.
Com o mundo 'de pernas para o ar', comandado com a incerteza da pandemia da COVID-19 que assolava o mundo inteiro, o 'Martins' foi um autêntico bebé da quarentena para Filipa, a sua luz ao fundo do túnel durante um período conturbado.
"Começámos a fazer o elemento e a tentar perceber se aquilo ia dar ou não ia dar, e depois quando fomos ao código de pontuação para saber quanto é que valia para meter no esquema, ou seja, se valia o risco ou não, só aí é que percebemos, passado dois ou três meses, que não existia o elemento. Na altura, o 'Martins' foi o que nos motivou um bocadinho a lutar não havendo competições e sem ter objetivos assim mais específicos", acrescentou.
Quase um ano depois da sua criação, 'Martins' foi apresentado ao público e levou Portugal, mais uma vez, para as bocas do mundo. A melhor ginasta portuguesa de todos os tempos voltava a fazer história num dos melhores anos da carreira da atleta do ACRO Clube da Maia.
Um, dois, três: Todos os caminhos vão dar a Paris
Foi em Antuérpia que, em outubro do ano passado, Filipa conseguiu garantir a presença nos seus terceiros Jogos Olímpicos da carreira, no mesmo sítio onde há dez anos se deu a conhecer ao mundo. A maiata prepara-se assim para igualar o feito de Esbela da Fonseca, única portuguesa na história com três presenças na competição de Ginástica Artística dos Jogos Olímpicos, em Roma em 1960, em Tóquio em 1964 e no México em 1968.
Com os Jogos Olímpicos no horizonte, já neste verão, em Paris, Filipa Martins recordou o Rio'2016 como "a realização de um sonho" e Tóquio'2020 como uma experiência "completamente diferente" devido à pandemia da COVID-19.
"Foram Jogos muito diferentes, mas nos dois deu para aproveitar muito a experiência. Os primeiros foi muito a realização de um sonho. Os segundos foi a pandemia, foi completamente diferente, não houve público, andávamos um bocadinho sem tanto contacto com os outros atletas, com medo de passar COVID ou contrair", relembrou.
A sua estreia nos Jogos Olímpicos ficou ainda marcada... sim, por mais um recorde! O 37.º lugar no concurso 'all around' no Rio de Janeiro foi a melhor participação olímpica de sempre de uma ginasta portuguesa. Resultado esse que Filipa ambiciona bater já neste verão.
"Acho que nós atletas nunca estamos satisfeitos com os resultados que temos e queremos sempre mais… mesmo que eles sejam os melhores do nosso país"
"Nos primeiros, apesar de ser a minha estreia e de ser a melhor portuguesa de sempre... eu não estava bem fisicamente, então sei que não dei o meu melhor. Nos segundos Jogos tive uma falha logo no primeiro aparelho... Por isso, sinto que posso dar um bocadinho mais este ano, mas é sempre aproveitar a experiência porque são momentos únicos e muito importantes, porque temos só aquele momento para demonstrar tudo o que fizemos em quatro anos. É sempre difícil…", apontou.
Este ano o objetivo para Paris 2024 é claro, ser uma das 24 melhores ginastas na somos dos quatro aparelhos: "Desde Tóquio que temos como objetivo tentar a final all around. É o nosso principal objetivo conseguir essa final, no entanto, é tentar fazer o melhor que posso, treinar ao máximo para chegar lá e fazer o melhor possível e as melhores pontuações. Depois o que vier que seja sempre bom como tem sido até agora".
Mas, e a medalha olímpica? Olhando para a realidade portuguesa, Filipa afirma estar com "os pés bem assentes na terra".
"Para ser muito sincera e conhecendo a realidade portuguesa, sabemos que pedir uma medalha é sempre difícil. Eu estou a tentar chegar a uma final all around, que é um lugar entre as 24 melhores ginastas, ficar em 24.º para mim é a minha medalha de ouro para estes jogos. Claro que sonhamos sempre com uma medalha... ‘Ei, quem me dera um dia… ’, mas há que pôr os pés na terra e conhecer a nossa realidade. Não é algo inalcançável, mas é algo muito difícil de lá chegar", revelou.
A verdade é que a realidade da ginástica portuguesa ainda está muito aquém de outros países e para se poder ambicionar pelos lugares do pódio, Portugal "ainda tem de mudar muito".
"Temos primeiro de ser um desporto profissional, tanto nós atletas, como os nossos treinadores. Falta uma estrutura toda por trás… para não fazerem como eu que tem de ir a 50 médicos diferentes pelo Porto inteiro... é necessário um acompanhamento mais diário. Eu acabo por ter esse acompanhamento semanalmente, mas porque consigo deslocar-me, porque tenho carro. As crianças não conseguem… têm de ser os pais a andar de um lado para o outro e às vezes também não conseguem. Acho que falta muita coisa… mas se comparar quando comecei já está muito melhor", admitiu.
Quanto ao futuro, Filipa admite ser "super realizada" com tudo o que atingiu na ginástica: "Desde os Jogos de Tóquio que achei que não havia mais nada para conquistar e se calhar os anos seguintes foram aqueles que consegui conquistar mais coisas... Os meus objetivos e sonhos de criança era estar presente nuns Jogos Olímpicos, tudo o resto faço porque adoro a modalidade e adoro competir e o que vier a seguir é ótimo".
A dificuldade de ser ginasta em Portugal
"Infelizmente em Portugal não é possível viver apenas da ginástica": É esta a dura realidade de grande parte dos desportos individuais em Portugal e a ginástica não é exceção, principalmente devido à falta de profissionalização do setor e do apoio dado à modalidade.
As horas exaustivas de treinos aliados aos estudos ou à tentativa de arranjar um trabalho tornam muitas vezes impossível a continuidade na ginástica.
"De todo que não se consegue conciliar a ginástica com um trabalho… Normalmente eu treino 3h30 de tarde, às vezes duas horas de manhã, mas nos últimos anos não tenho treinado de manhã, mas passo essas horas na fisioterapia ou nos médicos. Ando sempre a correr de um lado para o outro porque acabamos por não ter um Centro com isso tudo, então começo a correr o Porto todo para ir onde preciso e acabo por não ter tempo para nada…", explicou Filipa que concilia a ginástica com o mestrado em 'Treino de Alto Rendimento'.
Estas dificuldades levam a que muitas ginastas não consigam "cobrir tudo e têm de começar a trabalhar para pagar a faculdade e acabam por ter de sair da ginástica", pela "falta de tempo" ou "também porque não têm retorno financeiro".
"É por isso que há uns anos diziam que a ginástica acabava muito cedo, não havia longevidade e quase não havia ginastas com mais de 20 anos… Hoje também estou aqui porque sempre tive esse apoio e porque tive um bocadinho mais de resultados, mas há ginastas que infelizmente ficam ali pelos 18/20 anos e têm que se fazer à vida", explicou.
No seu caso, Filipa admitiu que nunca temeu ter de deixar o sonho porque sempre meteu "a ginástica em primeiro lugar".
"Sempre disse que a faculdade ia fazer ao longo da minha caminhada na ginástica e quando conseguisse fazer... por isso é que ainda estou a acabar. Desde muito cedo que a ginástica foi prioridade porque sempre achei que ia acabar muito cedo. Eu dizia sempre: 'Ah, aos 20 anos eu tenho tempo de fazer a faculdade porque é quando vou acabar a ginástica'. Algo que não aconteceu, claro…[risos]", afirmou.
E depois dos Jogos?
Aos 28 anos de idade, 24 deles de carreira na ginástica, Filipa Martins admite que em Portugal possa ser considerada como uma veterana apesar de não sentir que o seja.
"Em Portugal, posso ser considerada um bocadinho [como veterana]… Mas sei que a nível mundial já há ginastas muito mais velhas a competir também... mães e tudo! Não sinto que seja veterana, mas as miúdas que vão comigo a campeonatos têm ali dos 18 para baixo", admitiu.
Filipa admite que não sente a pressão de ser vista como uma inspiração pela nova geração de ginastas, apesar de saber o peso que tem no seu percurso: "Infelizmente habituei as mal porque é 'Ah, a Filipa nunca falha', mas, ao mesmo tempo, sinto que com a experiência que já tenho consigo ajudá-las em alguns problemas que elas possam ter ou que possam surgir".
"Infelizmente habituei as mal porque é 'Ah, a Filipa nunca falha'"
Mas, e quando falha? "É sempre frustrante, principalmente porque só temos quase uma chance para mostrar aquilo que treinámos em quase três meses… temos um minuto e meio ou menos para mostrar trabalho e às vezes corre mal ou simplesmente não estamos num bom dia ou estávamos com alguma dor. É sempre frustrante, mas tento sempre aprender com as competições que foram menos boas e que correram menos bem, para perceber o que correu pior e para aprender para a próxima e melhorar".
As lesões fizeram parte da sua carreira e, depois de 24 anos a treinar, admite que já não treina sem dores nos pés.
"Aprendemos muito cedo a ter uma lesão e a levantarmo-nos mais fortes. Hoje em dia, já não consigo treinar sem dores nos pés… é um processo um bocado de aceitação, de que com a minha idade e com tantos anos de ginástica, o corpo já comece a sentir e, principalmente, perceber que não vai dar para treinar como eu queria, por isso, sempre que consigo treinar sem tanta dor, tenho de fazer aquilo da melhor forma que posso. É difícil... queria treinar mais, porque sei que quanto mais treinar, mais preparada vou estar na altura, mas… infelizmente é assim", admitiu.
"Hoje em dia, já não consigo treinar sem dores nos pés…"
Com o fim da carreira como ginasta cada vez mais próximo, Filipa assume que não teme o dia que tenha de abandonar as competições e deixa ainda a revelação: "Depois destes Jogos não sei se continuo ou se paro… É algo que já passa na minha cabeça porque estes últimos anos foram super dolorosos para o meu corpo e para a minha cabeça. Já custa muito…".
"Mas, não sinto que deixar [a ginástica] seja doloroso porque estou a acabar o mestrado em 'Treino de Alto Rendimento', por isso vou estar sempre ligada à modalidade porque quero ser treinadora. Por essa mesma razão, acho que sempre que me apetecer posso ir fazer uns exercícios [risos]", concluiu.
Até lá, aproveitemos para ver Filipa a espalhar magia em mais uns Jogos Olímpicos, desta feita, em Paris.
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